quinta-feira, 26 de julho de 2007

Tédio sem fim

As paixões sociais, políticas e culturais parecem extintas, os discursos da mídia arrastam-se a custo, pasmacentos. Nem no trato social nem na relação com a natureza são formulados novos desafios. A idéia de uma grande "tarefa para a humanidade" soa não só antiquada, mas também ingênua e até fora de cabimento.
O que hoje se louva como novo e promissor não é mais um conteúdo ou um fim qualquer, mas a simples forma ou o simples meio, o aparato despido de todo espírito. A Internet é o melhor exemplo para tanto. Quanto mais rapidamente evolui a tecnologia da comunicação, menos conteúdo há que valha a pena ser transmitido. Se o meio tecnológico rouba a posição ao conteúdo, a própria "razão instrumental" conduz ao absurdo. No estágio final desse processo, seres humanos munidos de perfeitos meios de comunicação nada mais terão a dizer.
Essa ilimitada falta de conteúdo e objetivo anuncia o esgotamento intelectual e cultural do sistema social dominante. Tal como o homem só pode se constituir como indivíduo dentro da sociedade, como indivíduo ele só pode cultivar conteúdos e objetivos sociais. O indivíduo voltado exclusivamente a si mesmo é por força vazio, incapaz de forjar conteúdos próprios; seus projetos se esvaem na trivialidade fútil. No início do século XXI a modernidade mergulha num tédio mortal.


quinta-feira, 19 de julho de 2007

Aparição

As figuras nas cortinas de azornal, escalavradas pelo vento, se cumprimentaram uma a uma e Mary Éfe entrou no quarto.
Mary Éfe ainda com sangue seco sobre os olhos.
Ali, ali diante desse genuflexório, se ajoelhou para mendigar a doce languidez da vida eterna, ali vi seus lábios se mexerem sem sair voz, ali vi seus olhos mortos fitarem o nada em direção ao crucifixo barroco.
Ali ficou escavando seus pecados mais recônditos sem olhar uma só vez em minha direção, eu seu assassino, refugiado nessa ruína, empoeirada cama de dossel.
Então não sei se foi a palidez da lua ou de lúcifer, mas sua face se voltou para o outro lado e saiu do quarto rumo a não sei que horrores.
Preferi acender a luz e voltar a profunda melancolia dos tercetos, ali onde uma voz que geme e chora ao mesmo tempo repete sem parar que não há infelicidade maior do que lembrar na miséria do tempos em que fomos felizes.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Podridão e loucura


Ainda não sei bem ao certo em que circunstâncias exatas se deu a "queda".
Até porque só restaram imagens.
Imagens que gritam em vão.
Nas profundezas do nosso ser o mundo mágico, exilado, rói a raiz da modernidade. Quando ela se partir começará aquilo que todos homens despertos, através das eras já vêem avisando, seja pela ira, amor ou indiferença: esse mundo começou com uma calamidade e com uma calamidade terminará.
Não precisava ser assim. O entendimento da totalidade transcendental observa que o sonho harmonioso da criação, a origem, não continha em si os germes do pesadelo monumental que hoje nos tritura, como defende o pensamento da crítica radical. Também diverge da antropologia agostiniana que vê o homem girando sem direção em torno de uma natureza corrompida pelo pecado, embora concorde com o cerne: a separação cegou, ensurdeceu e aleijou o homem. A separação do sentido original e a busca mau-sucedida por um sentido próprio fez do homem essa vergonha cósmica que vemos aí. Escarrado, defecado e podre o homem moderno se arrasta sobre o vômito da razão e pede mais drogas aos deuses do consumo.


O homem fez a experiência de sua pseudo-demiurgia e esta se revelou como voltada para o vazio e a morte.
E o clamor da angústia sufocada pelo barulho enlouquecido do nosso cotidiano de lama tecnológica, tende a subir cada vez mais e romper "os céus".

Quem escapa da lavagem cerebral coletiva começa a ser confundido com os loucos.


E os loucos quem são?
Justamente: os que dizem que o fim está próximo.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Nostalgia dolorosa

Episódio das sereias:-Amarrado no mastro do navio Ulisses escuta a doce sedução das ori­gens, mas é aprisionado por sua própria vontade, ao passo que seus marinheiros, (presos à labuta cotidiana) sequer a escutam.É à essas origens que o mundo precisa regressar, senão quiser se dissolver no negro espetáculo da dissolução de uma calamidade triunfal.



O primeiro motivo dessa alegoria consiste em interpretar o triunfo de Ulisses sobre as Sereias como o de uma forma emergente de racionalidade sobre o mito, mais precisamente, como a transformação da magia em arte. Enquanto monstros imemoriais, aquáticos e femininos, as Sereias encarnam os poderes mágicos anteriores ao surgimento do sujeito como identidade racional e determinada. Sua força mágica de sedução provém da atração ou da saudade que continua exercendo a representação de uma indistinção feliz entre o si (selbst) e o mundo, lembrança da indistinção entre o recém-nascido e sua mãe segundo Freud; mas sucumbir à sedução dessa felicidade também significa desistir da individuação e, portanto, arriscar a própria existência: os viajantes que se entregaram às Sereias forma por elas devorados. Ulisses resiste às Sereias, mas não abdica do gozo (incompleto) de escutar seu canto: reconhece o encanto, mas não cede ao encantamento. Neste gesto, os poderes da magia são condenados à ineficácia e mantidos como expressão da beleza e da transcedência: são transformados em expressão artística. Se a arte surge, então, da magia como sua forma mais racional e mais pura, ela também emerge como beleza impotente, sem eficácia, uma expressão sem conseqüências práticas, uma mera forma separada da ação.

Uma lástima.

terça-feira, 3 de julho de 2007

"Descer" demais: isso é o pecado

"Todos os seres são infelizes; mas quantos o sabem?"


Arthur Machen nasceu em 1863, na antiquíssima aldeia de Caerleon, cujo nome romano é Castra legionum, onde se guardam ainda lendas do rei Artur. Era filho único de um sacerdote galês. A sua infância foi solitária (tal como toda a sua vida) e foi marcada pela eternas ruínas romandas, as trevas célticas dos bosques e a caótica livraria do seu pai.
Aos dezasseis anos publicou o seu primeiro poema, sobre os mistérios de Elêusis. Desse poema juvenil não resta senão um exemplar que em nada revela o seu autor; mas o tema - a iniciação divina ou diabólia - está quase em todos os seus livros. Aos dezanove anos foi para Londres. No "opaco labirinto" dos subúrbios do noroeste dessa cidade descobriu as esplêndidas confissões de outro solitário, De Quincey, e laboriosamente escreveu o seu primeiro livro: Anatomia do tabaco. Em 1895 publicou o ciclo de relatos fantásticos Os três impostores. Os críticos queixaram-se da indefinição de certas histórias de Machen e difusidade dos seus demónios. Creio que é crítica é errada. Nos livros de Machen o conceito de pecado é fundamental.


Mas para ele o pecado é menos uma transgressão voluntária das leis divinas que um estado abominável da alma.


Por isso a solidão das suas personagens; por isso são assediadas pela pura tentação do Mal, embora não para cometer maldades concretas."